O anúncio da criação da Secretaria de Saúde Digital, nova pasta subordinada ao Ministério da Saúde, gerou forte repercussão e expectativas por parte do setor. Com o aumento da demanda por conectividade, telessaúde e compartilhamento de dados no SUS, assim como o uso de novas tecnologias como inteligência artificial, especialistas avaliam que foi uma decisão acertada do novo governo.
Da mesma forma, a indicação do nome de Ana Estela Haddad para assumir a Secretaria também tem sido vista com bons olhos. Professora titular do Departamento de Ortodontia e Odontopediatria da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (USP), ela tem experiência com saúde digital, em especial telessaúde, e já atuou dentro do ministério entre 2005 e 2010.
A pasta será composta, até o momento, por 3 departamentos: Departamento de Saúde Digital e Inovação, Departamento de Informação para o Sistema Único de Saúde (Datasus) e Departamento de Avaliação e Disseminação de Informações Estratégicas em Saúde. Espera-se que com o status alcançado e uma representante dedicada que tenha voz dentro do ministério, a saúde digital ganhe destaque.
Dentre as prioridades elencadas para a pasta está a continuidade de programas que têm se mostrado positivos, como a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), a ampliação do uso da telessaúde no SUS, criação de regulação para inovação e a inclusão da saúde digital nas grades curriculares das universidades.
Para isso será preciso ampliar o diálogo com outras secretarias e ministérios e investir em segurança de dados. Empresas privadas podem ser utilizadas para parcerias com o governo, já que possuem expertise e estrutura. Com o potencial de trazer economia e mais sustentabilidade ao serviço público, a saúde digital é vista como essencial em um período com grande discussão sobre o orçamento público, mas também será peça-chave para levar mais acesso à população e trazer novas possibilidades de assistência e promoção da saúde.
Secretaria de Saúde Digital
“O governo anterior já vinha trabalhando essa parte da saúde digital, mas com a pandemia a prioridade era totalmente diferente. Temos que criar essa Secretaria no momento que a conjuntura é adequada. Por ser no começo do governo, já mostra uma tendência clara de usar mais a tecnologia para ajudar na saúde“, aponta Marco Bego, CIO (chief innovation officer) do InovaHC, núcleo de inovação do Hospital das Clínicas.
A criação da secretaria vem para aumentar a importância da saúde digital, já que atinge o mesmo patamar de outras secretarias, como a Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS) e a Secretaria de Atenção Especializada à Saúde (SAES), com acesso direto à ministra da Saúde, Nísia Trindade. No passado, o departamento que respondia pela área ficava dentro da Secretaria Executiva.
O decreto que oficializou a criação da Secretaria de Saúde Digital definiu que, dentre as principais funções da pasta, está apoiar as outras secretarias do Ministério da Saúde no planejamento, uso e incorporação de produtos e serviços de informação e tecnologia da informação e comunicação, incluindo telessaúde, infraestrutura de tecnologia da informação e comunicação – TIC, desenvolvimento de software, interoperabilidade, integração e proteção de dados, disseminação de informações e políticas de avaliação e monitoramento em saúde.
Para isso, cada secretaria leva suas demandas através do Comitê Gestor de Saúde Digital, que também é composto pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).
De acordo com Luis Gustavo Kiatake, diretor de relações institucionais da Sociedade Brasileira de Informática em Saúde (SBIS), um dos desafios da Secretaria de Saúde Digital é fortalecer esse Comitê e garantir a participação de todos os interessados. Em sua visão, a criação da pasta “demonstra um comprometimento do governo já desde o começo com a saúde digital. É o entendimento de que a informatização consegue efetivamente melhorar a saúde e o SUS como um todo”.
Telessaúde
Há o consenso de que a telessaúde deve ser uma das prioridades da pasta. Apesar de o SUS já ter iniciativas nesse sentido, como a implementação do projeto UBS Digital e atendimentos realizados através do Programa de Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS), em parceria com instituições privadas de referência, ainda há poucas experiências em relação ao tamanho da população e capilaridade do sistema.
“Justamente pelo fato de ser um orçamento mais enxuto é que a telessaúde é a salvação da saúde. O Brasil tem uma perda de mais ou menos R$ 40 bilhões ao ano em desperdício. No momento em que existe um enxugamento orçamentário, a telessaúde é a melhor forma para otimizar o sistema de saúde, reduzindo os desperdícios e agilizando todo esse processo”, defende Chao Lung Wen, presidente da Associação Brasileira de Telemedicina e Telessaúde (ABTms) e chefe da disciplina de Telemedicina da Faculdade de Medicina da USP.
Para o especialista, a telessaúde deve ser utilizada em programas de prevenção e educação em saúde. Chao também alerta que é preciso focar, em parceria ao Ministério da Educação, para a inclusão do tema na grade curricular da formação dos profissionais da saúde, definir boas práticas e incluir a prática na tabela SUS.
“Temos que normatizar esse processo do exercício profissionalmente em telessaúde, desenvolvendo as diretrizes de boas práticas clínicas, para que nós não tenhamos o exagero da banalização e da irresponsabilidade, entre outros. Também desenvolver a noção da saúde conectada. A telessaúde não substitui o sistema de saúde real, mas acelera todo o processo de saúde existente, melhorando a logística, o cuidado ou linhas de cuidado contínuo”, afirma o presidente da ABTms.
RNDS
Os avanços na Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), impulsionados pela demanda da pandemia de Covid-19, é uma das grandes iniciativas e legados do Datasus. Um de seus méritos é ser passível de evoluções constantes, como a recente inclusão do certificado de vacinação contra a febre amarela no Conecte SUS, plataforma de acesso do ministério.
A prioridade para esse departamento, no entanto, é que ele tenha continuidade em seu trabalho. “Esperamos que não tenha um desmonte daqueles programas que estavam ocorrendo de uma maneira positiva”, defende Luis Kiatake, diretor de Relações Institucionais da SBIS.
Por outro lado, Kiatake explica que é preciso repensar e reforçar questões de segurança da RNDS, que estão com os dados concentrados no ministério. De acordo com as boas práticas do mercado, o diretor explica que o ideal seria ter uma maior distribuição das informações, como em seus estados de origem, por exemplo, para evitar que um único ataque hacker possa prejudicar todo o sistema.
Com a criação da Secretaria, o Datasus passa a integrar a pasta, o que é visto como algo positivo pelos especialistas. Para Chao Lung Wen, da ABTms, o grande desafio vai ser priorizar estratégias para o departamento, assim como “consolidar a RNDS e fazer com que ele crie um data lake importante e estratégico, tendo sistemas de inteligência artificial que nos permitam desenvolver a saúde preditiva”.
Outro ponto levantado por Marco Bego, do InovaHC, é a importância de definir as regras de compartilhamento de dados, para unificar a forma que as informações se movimentam dentro do SUS e, a longo prazo, com hospitais privados e operados, promovendo uma interoperabilidade:
“Não importa o meio que você usa, até para a gente dar competitividade, mas tem que ter uma regra que defina o protocolo para trocar dados, principalmente os dados do SUS. O governo vai pagar por isso, então é natural que ele organize esses dados para avaliar todas essas iniciativas e para ver se a qualidade está adequada”.
Outras demandas
Para fomentar e criar um ambiente favorável à inovação, os especialistas consideram que é preciso criar um sandbox regulatório, regime de regras que permitem realizar testes em um ambiente isolado e seguro, sem colocar em risco outras informações do Ministério da Saúde e da população usuária do SUS. Isso seria importante para desenvolver e aplicar novas ferramentas de inteligência artificial que possam ser utilizadas no setor.
“Temos um potencial intelectual muito grande no país, mas a gente precisa formar essas pessoas, treinar e disponibilizar ferramentas para que consigam trabalhar. Você precisa de dados para testar, e para esses pesquisadores conseguirem testar e mexer com esses dados têm os pressupostos de LGPD, anonimização e como vai trabalhar”, explica Kiatake, da SBIS.
A conectividade é outro ponto a ser levado em consideração, mas que novas tecnologias podem vir a beneficiar os programas da pasta. Marco Bego observa que “temos visto com bons olhos a entrada do 5G para resolver muitos problemas que a gente tenha, sejam eles simples como a qualidade da conexão e a transmissão de mais dados. Temos uma oportunidade gigante e desejo muita sorte e inteligência para a secretária”.
Bego também aponta que qualquer projeto pensado pela pasta pode e deve passar por um framework, semelhante ao utilizado pelo InovaHC. O processo conta com diversas análises, que avaliam o impacto ao paciente e profissionais, a viabilidade de estrutura e tecnologia, os protocolos médicos utilizados e suas adequações, a sustentabilidade econômica, as equipes envolvidas e a regulamentação.
“Passar por um framework desses é uma coisa inteligente para colocar os projetos no ar e dar velocidade. A saúde digital não vai para frente porque tudo é muito lento, precisa dar velocidade. Pegar coisas que já estão funcionando e não querer inventar a roda”, afirma o CIO.
Quem é Ana Estela Haddad?
Graduada em Odontologia e professora titular do Departamento de Ortodontia e Odontopediatria da Faculdade de Odontologia da USP, Ana Estela Haddad foi nomeada pela ministra Nisia Trindade para assumir a Secretaria de Saúde Digital. Sua experiência e atuação com telessaúde fez seu nome ser bem recebido pelo setor.
Foi diretora científica da Associação Brasileira de Telemedicina e Telessaúde (ABTms) até o início deste ano, quando se retirou para assumir o cargo no ministério, e também vice-presidente da instituição no biênio 2014-2015. Na universidade, também ministra a disciplina de Teleodontologia, Telessaúde e Saúde Digital na pós-graduação da FMUSP, sendo também coordenadora-adjunta do Núcleo de Apoio a Políticas Públicas Escola da Metrópole, no Instituto de Estudos Avançados da USP.
“Ana Estela já tem uma participação grande dentro dessa questão do digital, principalmente voltado para a telessaúde. Também tem esse viés que pode olhar e promover a academia, algo que está na no DNA da SBIS, fazer esse contato entre a academia e a iniciativa privada”, observa Kiatake, diretor da Sociedade.
No serviço público, foi diretora de Gestão da Educação na Saúde da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES) entre 2005 e 2010 e foi uma das idealizadoras do Programa Nacional Telessaúde Brasil Redes, principal iniciativa do Governo Federal de teleconsultoria com especialistas e segunda opinião médica.
Anteriormente, trabalhou no Ministério da Educação entre 2003 e 2005, como assessora do então ministro Cristovão Buarque, onde colaborou com a implementação do Programa Universidade Para Todos (Prouni). Esposa do atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad, foi primeira-dama da cidade de São Paulo, onde atuou como coordenadora do projeto São Paulo Carinhosa, que desenvolvia projetos voltados à primeira infância.
“É uma pessoa que tem uma bagagem muito importante na área. Com a liderança dela, talvez possam turbinar um pouco mais o processo da aplicação de tecnologia na organização ou na melhoria do sistema de saúde”, avalia Chao Lung Wen, da USP.
Fonte: https://futurodasaude.com.br/secretaria-de-saude-digital/